INTRÓITO

Subverter, Exorcizar, Viver, Beijar, Amar, Odiar, Saber, Piratear, Analisar, Mover, Parar, Rejuvenescer, Envelhecer... Tudo isso e nada. Petit Subversion é só um diário de alguém comum - de Anatólia... um fantasma.

sábado, 23 de janeiro de 2010

O Ranho da Subjetividade


“O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor”.

(Fernando Pessoa – Livro do Desassossego)


Poderia fingir sono e sonho e, então, viver na fantasia do eterno dormir. Poderia se não fosse à insônia e os monstros do dia a me perseguir. De lá para cá não sei mais ao certo quem sou. E onde é este lá e este cá? É dentro de mim. Vivo, faz quase um ano, uma espécie de in solidum. Toda minha alma está tomada pelo mal. Por conta disso dei, ultimamente, de ler o mal do século. Ler Rimbaud com dezoito anos é uma coisa e ler Rimbaud aos trinta e poucos é bem outra. O mesmo vale para Baudelaire, meu grande mestre, meu Satã da literatura.

Tenho pronunciado a célebre estrofe das litanias: “Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria”. Quando estou andando solitária, na rua povoada de civilização, me ouço em ladainha pedindo misericórdia para Satã. Sinto-me louca, miserável e em decomposição com a vida, diria melhor, em descompasso com a vida. Desculpo-me por tudo e por todos os sofrimentos do mundo, como se eu fosse a única causa dos males que afligem os humanos. Nas noites silenciosas sento-me na varanda e fumo pensando que quero ser deus – um deus cruel que mata a todos e depois chora. Aliás, como tenho chorado... Será que lágrimas curam? Momentaneamente sim. O desejo maior é voltar ao calor uterino, pois vivo um espedaçamento narcísico, diria Freud – ferida que jamais cicatriza.

Minha melancolia é fruto... fruto. E basta dizer isso. Fruto de uma missa fúnebre. Como me apraz à alma escutar cantos fúnebres... Estou num contínuo e interminável ritual de morte. Onde o morto, quase em decomposição, anseia ser enterrado e ninguém lhe acode, pois todos permanecem fixos. Fumam, silenciam, bebem e se encaram vez que outra para ter a certeza de que permanecem todos na sala. Uns vigiam os outros e ninguém pode sair. Lá fora aves de asas oblongas circundam a casa, cães magricelas disputam o território. Pediriam um osso de braço do defunto? Dizem que cães não comem homens. Sinceramente, não sei. Só sei que homens são capazes de comer homens – a velha história da antropofagia.

Lamentemos, de mãos suadas e dadas, para eu-infeliz e para outros infelizes:
“Vita detestabilis, nunc obdurat, et tunc curat... sors immanis et inanis, rota tu volubilis, status malus, vana salus semper dissolubilis, obumbrata et velata michi quoque niteris; nunc per ludum dorsum nudum fero tui sceleris. Sors salutis et virtutis michi nunc contraria, est affectus et defectus semper in angaria”.

Incomoda-me toda esta inteligência do mundo sobre o mundo, querem curar a tudo e nos deixam mais loucos, mais sofridos. Quanto mais curam, mais doenças causam. Não quero fazer parte do mundo, quero estar alheia, se coragem não me faltasse – pois bem, eis uma fraqueza que escondo – a covardia – faria como Rimbaud, escolheria uma terra vulcânica para me esconder e sofrer, suar e sufocar... Pobre Rimbaud morreu amputado e solitário. Que roda da fortuna reserva-me o ocasio? Qual o trem que hei de pegar para encontrar deus – “Deus est anima brutorum?”

Vou agora fingir que durmo para dissipar as luzes que me ofuscam, pois já é dia e os passarinhos cantam para minha angústia. Detestáveis eles cantam... Insipientes eles cantam... Por favor, digam-me, onde está o botão para desligar tudo isso?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A mùsica do Faminto


A música do faminto é escutar murmúrios que não são seus,
Mas de sua própria alma álacre.
É ouvir sussurros que não provocou;
Além dos gemidos perturbadores vindos de longe
A música do faminto é sentir um gozo que não é seu
Faz o outro gozar e passa fome
Satisfaz sua ânsia olhando a boca lambuzada do outro
A música do faminto e cantar canções de outros
A música do faminto são aspersões
Às vezes come ar,
Noutras, come e bebe nada,
Por isso é faminto.
O faminto despreza o que tem
E o que não tem, faz de música a imaginação à flor da pele.

Anatólia Akkale
18.01.2010 (que data horrenda)

sábado, 16 de janeiro de 2010

BREVE ORAÇÃO DA VIRADA DE ANO


(Arthur de Faria, sobre poema de Daniel Galera)

"Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem."
(Hilda Hilst, "Com os meus olhos de cão")

Deus, por favor não mais permita que os cachorros me dirijam olhares tristes por trás das grades do jardim das casas.
Deus, poupe-me também dos olhares tristonhos das empregadas que contemplam a cidade apoiadas nas sacadas dos prédios.
Tira, por favor, de todos os asilos, os adesivos do Ecco Salva afixados nas paredes.
Que as vastas platéias de cinema sejam ocupadas sempre por uma única pessoa, e que na saída do filme chova invariavelmente.
Bota fim, deus, a esse constrangimento injustificado que faz com que as pessoas desistam de trepar e dar abraços, mesmo quando elas sabem que isto seria necessário.
Convence a todos da impossibilidade do amor, e observa enquanto descobrem o amor como a única possibilidade.
Quanto aos pecados capitais, peço que tornes a Gula compatível com a Vaidade, a Preguiça compatível com a Avareza, a Ira compatível com a Inveja, e que a Luxúria soterre as anteriores.

Acabe com a Aids, deus.

Que todos tenham plena consciência de que vão morrer definitivamente, e que na hora da morte não possam evitar um breve sorriso de desobediência infantil. E conserva os dentes dentro de nossas bocas, para que apodreçam conosco.
Que persista no tempo apenas aquilo que fomos capazes de criar.
Peço que amanhã de manhã, deus, eu seja acordado com o peso familiar de certo corpo em cima do meu.
Que o sol invada minha barraca brando, resignado.
Então será o ano 2010, mas não fará diferença.