INTRÓITO

Subverter, Exorcizar, Viver, Beijar, Amar, Odiar, Saber, Piratear, Analisar, Mover, Parar, Rejuvenescer, Envelhecer... Tudo isso e nada. Petit Subversion é só um diário de alguém comum - de Anatólia... um fantasma.

sábado, 12 de julho de 2008

Meu desejo ovelha negra repartido como os pães


“Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo”. -Clarice Lispector-

Quando Psiqué saía do corpo, ela voava até o Hades e dialogava com Odisseu. Psiqué era uma imagem. Para despertar Psiqué, bastava uma pequena gota de sangue, e até mesmo, o cheiro do sangue era suficiente. Psiqué era imortal – quando aparentava estar morta, algo sempre a despertava. Assim funciona o desejo – desejos são imortais; não há como fugir do desejo; e mesmo que adormecido, basta uma gota de perfume, uma imagem para que ressurja e nos faça navegar. Os desejos são, também, como cartas de navegação que nos levam a lugar nenhum, mas que nos dão um norte. São jarros vazios que permitem a forma. Quem não tem desejo deseja desejar – quem não deseja está morto. E se o desejo parar, também é uma morte – uma morte psíquica.
A REPARTIÇÃO DOS PÃES de Clarice Lispector é um pedido de satisfação de um desejo. Os convivas do almoço não tinham fome, mas ao verem a comida, ela apareceu. Parece que não queriam estar naquele local, estavam resignados a algo insosso, sem sabor de desejo. Era um momento amorfo, convencional. Talvez, o convívio entre aquelas pessoas mascarava o que realmente sentiam – desejavam. Juntos repartiam o pão, em silêncio. Talvez comungassem do mesmo desejo... Havia uma cumplicidade maior... O prazer de um era entendido pelo outro. Eles não queriam estar lá, mas estavam. Por contingência, comodismo, educação, por um desprazer velado, que também é desejo de satisfação. Fora dali, existia Deus nas acácias, mas em nenhum momento houve coragem de pegar o trem e partir em direção a elas. Ou seja, era um desejo proibido. Lembremos que desejos não podem nunca ser satisfeitos, no máximo, realizados. A plena satisfação seria insuportável, uma morte.
Falar do desejo é como cair num buraco. E o meu buraco é como um poço sem fundo. Eu queria falar de todos, abraçar cada cheiro que, em algum momento me despertou. Cada livro, cada música, cada poema... Amo e desprezo todos. Neste momento só posso eleger um...
Quero avisar logo que o meu desejo também é proibido.
Para permanecer próximo à Clarice, o eleito é Caio Fernando Abreu. Bem que eu quis me afastar-me da mulher e esquecê-la, mas tornou-se impossível. Pois quem me apresentou a ela foi justamente o Caio Fernando – ele é, sem dúvida, um discípulo, algo de muito íntimo une os dois, talvez uma devoção à dor, uma identificação de ser e de lugar no mundo.
Fará exatos dez anos que ganhei OVELHAS NEGRAS, no dia do meu aniversário. E assim se seguiu, a cada aniversário ganhei um livro – a safra rendeu-me quatro obras de Caio Fernando. Claro que os amigos se cansaram, me dei conta, hoje, que nunca retribuí... Sinto-me uma ingrata. Só espero receber e pouco me dôo.
Voltemos a falar do Caio Fernando, que está vinculado com a história de uma amiga muito próxima – a amiga Angelina. Foi ela que me apresentou a este autor. O pai de Angelina morreu num estranho e insolúvel assassinato na década de oitenta, quando ela tinha apenas sete anos – fato que me marcou muitíssimo. Nos idos da adolescência, uma tia dela comentou que encontrou nas tralhas do porão um velho livro, que pertencera a seu pai – O OVO APUNHALADO de Caio Fernando Abreu. Oh, puxa! Surpresa para Angelina. O pai lia um escritor “maluco”! E foi assim que, em nosso circulo de amigos, dividíamos os loucos e confissionais contos deste escritor. Nos emocionávamos com tamanha vivência e lirismo das histórias. Emociono-me ao lembrar destes fatos e momentos tão únicos – hoje, especialmente, nesta noite fria de neblina, reporto-me para o vinho que bebíamos, as gostosas gargalhadas nas madrugas geladas e nas projeções que fazíamos para o futuro. Um desejo de voltar no tempo e resgatar cada vivência. Não sou mais uma adolescente e queria voltar a ser... Mas, voltemos ao livro que ganhei, antes que meus olhos se encharquem... OVELHAS NEGRAS... O título já é uma luva – que me caiu tão bem... Eu era (e sou) uma ovelha negra! Escolhi um conto deste livro chamado “Anotações sobre um amor urbano”. Escolhi-o porquê foi escrito no ano em que nasci – 1977. Ele é como um diário íntimo, parece fragmentos de cartas, coisa assim, bem à moda do eu. Abre o conto uma citação da Hilda Hilst “Te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres...”.
A história-confissão é de um amor que foge ao alcance, de um amor que não se tem coragem de revelar e os amantes se enredam, num jogo... A história pode ser o amor de um só. O texto é de uma prosa poética fulminante, me fazendo pensar nos amores platônicos e inconfessáveis que, um dia partiram meu jovem coração. Ah, me sinto piegas falando disso, mas não posso fugir. O Caio Fernando expressa, sem dizer diretamente, como é amar do mesmo, ou seja, querer um igual. O difícil momento de revelar seu amor homoerótico de uma forma natural... assim como falar dos carros que rodam, buzinam e a cidade faz barulho e você lá... Do lado do seu enamorado, mas que a qualquer momento pode fugir, fazendo barulho, se ouvir a tua confissão... “Eu to a fim de ti”. É um naufrágio. O preconceito nos joga pra fora do barco, nos devasta, nos afasta. É sim! Quantos amores deixamos de provar, com medo da rejeição – não qualquer rejeição, mas aquela da cara de nojo, da “anormalidade”.
Bem, é esse Caio que me levantou. As escrituras desse autor permeiam minha vida. Um dia, quando pensava em ser escritora, quis ser como ele. Aliás, ele é meu guru de escrituras. Eu desisti do tolo sonho de ser escritora, (mais uma vez piegas!), porém os restos que me restam do desejo de escrever, são sem dúvida, inspirados em Caio Fernando Abreu.

Há uma impossibilidade de falar do desejo, sem prender-me a descrições de fatos. Eis minhas escrituras permeadas de desejo. Aquilo que a palavra não consegue dar conta, mas que em cada significante respira, respira, respira o inexpressável de minha vida primária – minhas demandas de amor, as quais só consigo reconhecer quando implico vivências do outro.

2 comentários:

Mara* disse...

Caio tem coisas fortes e profundas. para quando o dia está pesado e o céu cinza demais, Caio, em suas cartas e crônicas, diz que nada melhor que um tanque cheio de roupa para nos trazer de volta à realidade.

"Pois repito, aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia guarda seu fio de luz. Nesse fio estreito, esticado feito corda bamba, nos equilibramos todos. Sombrinha erguida bem alto, pé ante pé, bailarinos destemidos do fim deste milênio pairando sobre o abismo. Lá embaixo, uma rede de asas ampara nossa queda."

adoro isso. quando da minha última queda, apesar de atéia, rezei para que anjos estivessem lá embaixo com uma rede de asas para me amparar. e lá estavam, um batalhão deles que me ergueram e me puseram de pé novamente.

beijo você com carinho.

Anônimo disse...

"...tolo sonho de ser escritora?

Q pena q desistiu dele. Pq ele ainda esta aí. Sua escrita é linda.

Dei uma passadinha por aqui. Gostei muito do q li.

Abraço