INTRÓITO

Subverter, Exorcizar, Viver, Beijar, Amar, Odiar, Saber, Piratear, Analisar, Mover, Parar, Rejuvenescer, Envelhecer... Tudo isso e nada. Petit Subversion é só um diário de alguém comum - de Anatólia... um fantasma.

domingo, 27 de abril de 2008

ASAS DO DESEJO À POESIA DE REINER MARIA RILKE

(Cena que abre o filme - Anjo Damiel)

Os anjos catalisadores do filme “Asas do Desejo” de Wim Wenders renunciam a imortalidade para provar uma xícara de café e um cigarro. Os anjos ouvem os pensamentos dos humanos, perpassam pelo cotidiano catalisando as dores e emoções que eles não são capazes de sentir; vêem o mundo com seus olhares sem cores, sentem as coisas e os objetos sem sentir; são capazes de roubar uma materialidade para tentar provocar alguma sensação. A dimensão de dois mundos (mundo angelical espectro e mundo humano paixões-desejos) é confrontada com a realidade da dor – a dor da 2º Guerra Mundial. A dimensão do real vem a tona com as imagens da Alemanha dividida pela guerra. O mundo espectral e onírico dos anjos é de um mundo sem angústias embora lamentem a eternidade e aparentemente invejem os humanos, mas não se angustiam como os humanos no seu cotidiano banal, em suas pobres vidas mortais. Asas do desejo nos oferece uma colagem de teorias filosóficas, uma espécie de síntese da humanidade – vai de Rilke (As Elegias de Duíno), Homero, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Walter Benjamin... as pinturas de klimt ao roteirista do filme (Peter Handke) ...
Em Kierkegaar encontramos algo mais ou menos assim: A angústia é a diferença que nos faz humanos. A angústia é humana! É isso que nos diferencia dos anjos e dos animais.
Em Walter Benjamin: O que é o anjo do futuro? Ele está com a cara voltada para o passado e não consegue prever o futuro – a memória já é fragmentada, a história é fragmentada.

Asas do Desejo prevalece como uma grande obra prima do cinema; é sempre bom rever. É um filme carregado de poesia, encanto, dor e angústia. As musas de Homero são outras, a morte nos angustia, mas ainda assim podemos degustar um café e nos pulverizarmos interiormente com a fumaça de um cigarro que carrega nossas angustia em 5 minutos de fumaça. A Angústia nos faz humanos – humanos que não conseguem vislumbrar um futuro, tudo é incerto, nossa memória se fragmentou, apesar da oralidade fluir,porém só a partir de uma leitura singular... Só o sonho ainda pode nos transportar para a realização de nossos desejos – desejos de anjos, desejos de humanos, mas nunca esquecer que a angústia vem de nossos desejos mais profundos e desconhecidos.

O filme de Wim Wenders tem profunda reflexão sobre a subjetividade, sobre a humanidade, sobre a contemporaneidade, sobre o futuro e principalmente sobre as paixões humanas que por último constroem as primeiras. É muito para minha pobre associação livre do momento. Nada termina aqui. O filme ainda possui fantástica fotografia da dupla de velhinhos: Henri Alekan e Louis Cochet além de uma gótica e ótima trilha sonora composta por Jürgen Knieper, seguida por acordes de rock end roll com as bandas: Crime & The City Solution a tocar Six Bells Chime. E ainda Nick Cave ao lado dos Bad Seeds a tocarem a mítica From Her to Eternety. Uma das seqüências mais lembradas pelos admiradores do filme é aquela em que o Anjo Damiel, ao seguir a sua amada Marion pelas escurecidas ruas de Berlin, acaba entrando em um clube underground e presencia a sensacional performance de uma banda tocando uma melancólica canção de melodia sombriamente bela: "Six Bells Chime".

Um poema de Reiner Maria Rilke:

O Anjo
*
Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.
O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem
à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

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Um Fragmento das Elegias de Duíno:

PRIMEIRA ELEGIA
*
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível. E assim me contenho pois, e reprimo o apelo
*
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Alguma árvore na encosta que diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
*
Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas.
Começa Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las. Já pensaste pois em Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos
Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto
Ser mais do que ela mesma? Pois parada não há em /parte alguma.
*
Vozes, vozes. Escuta, coração como outrora somente os santos escutavam: até que o gigantesco apelo levantava-os do chão;
mas eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem a atenção: eles assim escutavam.
Não que tu pudesses suportar a voz de Deus, de modo algum.
Mas escuta o sopro, a incessante mensagem que nasce do silêncio. Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.
*
Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
No espaço. E estar morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
*
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.
Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?
*
- Reiner Maria Rilke -

Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu

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