INTRÓITO

Subverter, Exorcizar, Viver, Beijar, Amar, Odiar, Saber, Piratear, Analisar, Mover, Parar, Rejuvenescer, Envelhecer... Tudo isso e nada. Petit Subversion é só um diário de alguém comum - de Anatólia... um fantasma.

domingo, 20 de abril de 2008

O que é ser artista? O que é escrever? (De Violet Trefusis para Vita Sackville-West)

(Escrivaninha de Vita)

25 de janeiro de 1918

Era uma vez, uma artista e uma mulher, e a artista e a mulher eram uma só pessoa. No decorrer do tempo, a mulher se casou; ela se casou com o príncipe de seus sonhos, e uma alegria irreversível e imutável desceu sobre ela. A artista foi temporariamente esquecida: envolvida em um confortável torpor, a artista dormiu, e a mulher exultou em sua condição de mulher e na felicidade que podia proporcionar...
Certo dia a artista despertou para encontrar a câmara de seu sono encolhida e distorcida, as janelas se tornaram muito pequenas, ela mal podia enxergar fora delas, os brocados estavam esmaecidos; os adamascados e cetins pendiam como fantasmas... Debilitada pelo pânico ela correu para sua janela; viu uma mulher brincando em um gramado macio com uma criança sorridente. Naquele momento, elas se encontraram; confrontaram-se uma com a outra, a mulher serena, amorosa, imperturbável, e a artista desafiadora, ciumenta, irritada diante da resistência. E a artista manteve-se firme e escarneceu da mulher. Pobre artista: Cigana desgrenhada e irresponsável, era mais do que ela podia suportar – Agora a mulher pertencia de coração e alma a seu marido e a seus filhos, mas a artista não pertencia a ninguém, ou antes à humanidade. Imaginária, ela divaga pela terra, hoje aqui, amanhã ali – o mundo é apunhalado pelas flores inúteis de sua proteção...
A combinação da mulher e da artista produziu uma espécie de mentalidade tão rara quanto sublime; um artista, seja na pintura, na música ou na literatura, deve necessariamente pertencer a ambos os sexos, seu julgamento é bissexual, deve ser completamente impessoal, e ele deve ser capaz de se colocar com impunidade no lugar de cada sexo.
O resultado deste equilíbrio intelectual foi tornar você de repente consciente da sabedoria de séculos nos olhos desta mulher; uma mulher de perfeita verdade, límpida, clara, intocada pela instabilidade do homem – você compreendeu que ela tinha em si algo de uma verdade eterna, de uma beleza eterna, adiante, muito adiante do alcance de nossa débil compreensão... Algo tão velho quanto as montanhas, tão velho quanto o mundo, porém eternamente jovem, eternamente inatingível... Algo divino, olímpico, vertiginoso, que vê até mesmo aquilo que é menos conhecido para si do plano da compreensão e da comiseração superlativas. A lira sonora que é concebida a um dentre mil silenciosos – o artista, sim! O artista que deve ser nutrido diariamente com novas intuições, novas condições, novos amores e novos ódios para se manter cantando para a humanidade! O artista – o supremo luxo que os deuses lançam ao mundo quando se percebe que ele deve se expressar ou morrer!
E a mulher talvez sorria quando ler isso, e seus amigos lhe dirão que esposa e mãe ideal ela é, o que é verdade, mas a artista se retrai horrorizada com a imputação de presunção que essas palavras não conseguem ocultar –
Deus sabe que é esteticamente incorreto o artista ser contido pela domesticidade. Pégaso é arriado a uma charrete, Marisa toca harmônio. Fecho meus olhos, e pareço ver, apesar dos atributos semelhantes aos de Demétrio com os quais a mulher é sem dúvida dotada, não a mulher, mas a artista galgando os cumes das montanhas, silenciosa, inspirada e só.

(Esta carta não foi assinada por Violet)

- As Cartas de Amor de Violet Trefusis para Vita Sackville-West-
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Para fazer uma análise deste conteúdo é preciso entender alguns fatos, fazer uma reconstituição dos passos cotidianos da vida de Violet e Vita, ao menos, neste período, nesta data, específica, da carta. Os ocorridos deste meio tempo é que ditam o conteúdo manifesto desta carta tão deslumbrante, genial. O que Violet fez foi uma análise ímpar... Para este mero trabalho sem propósito algum (nem por isso irresponsável), também usaremos de nossas possíveis associações – associações livre. Como não temos nenhuma pretensão, o que vai ditar o rumo desta analise são meras associações de coisas apaixonantes que podem se ligar, assim como podem se separar sem nunca terem combinado, como uma tórrida paixão.
Violet tinha 22 anos quando escreveu esta carta, estava, nesta época, fazendo aulas de arte, o que sem dúvida influenciou neste discorrido, além de ter trabalhado numa cantina de soltados em 1917(vendo os horrores da guerra) e sentindo-se muito solitária. Durante os anos de 1914 e 1918 pouco se encontraram. Neste período transcorria a 1º Guerra Mundial. Época contrariamente de felicidade familiar para Vita. Em 1914 nascia seu primeiro filho com Harold Nicolson. E em 1917 nasceu o segundo filho, Nigel (que aparece dando depoimento na biografia de Virginia Woolf no filme “As Horas”). Neste tempo, Vita parecia se dedicar ao lar feliz, o que provavelmente fazia Violet corroer-se de ciúme, de dor e distanciamento. A paixão queimava em fogo lente, esperando o momento oportuno para entrar em erupção. Isso ocorreu em 13 de abril de 1918, quando Violet foi visitar Vita sozinha, no seu novo endereço em Long Barn (mas isso é outra história).
Voltemos à análise do conteúdo textual. O que Violet quer dizer com a frase “era uma vez uma artista e uma mulher, e a artista e a mulher eram uma só pessoa.?” E ela continua dizendo que a mulher se casou e a artista foi temporariamente esquecida.... Dá muito na cara, não tem mistério o que Violet manda como mensagem para Vita. Ora, Vita queria ser uma artista, estava escrevendo um romance. Mas como ser artista e dona de casa, ou no melhor dos termos um mulher submissa aos filhos e marido, quando desejava ser a toda poderosa Vita Sackville-West – uma mulherzinha, para ser chula. Era isso que Vita desejava para si mesma? Violet conhecia muito bem os temperamentos de seu “Julian”, e queria abrir os olhos da outra, ou melhor, estava chamando Vita para pensar, para refletir sobre sua posição e antes de tudo, chamando Vita, novamente, para a tórrida paixão. Tem um fundo provocativo, com certeza.
Faremos uma referência a vida de Sylvia Plath, que não tem relação nenhuma com o romance nem vida social de Violet e Vita, mas responde a questão de ser uma artista e ser uma mãe de família, diria assim. O que nos interessa é somente a produção literária. A obra de Sylvia Plath não faz o menor sentido sem a vida dela. É preciso casar vida e obra. Sylvia só escrevia quando tomada de grande sofrimento e enquanto feliz e casada não produziu nada. Quando lemos uma poesia desta autora sem saber da autoria, logo, pensamos, quem escreveu só pode ser um amador, ou alguém desequilibrada, quase um psicótico, pelas palavras desconexas (mas não quero entrar no mérito agora, deixemos a posteriori). Mas pensando neste ponto, nos dirigimos a questão do que é escrever? Parece mesmo ser preciso uma boa dose de sofrimento psíquico para fazer uma grande produção. “O artista deve ser nutrido diariamente com novas intuições, novas condições, novos amores e novos ódios para se manter cantando para a humanidade” – escreveu Violet.
Vita estava sendo contida pela domesticidade do lar, da família, e enquanto fosse levada pela vida feliz nada que preste artisticamente seria produzido. Ao que tudo indica Violet lhe chama a atenção, “vá viver outras coisas mulher, entregue-se à bissexualidade, à paixão e venha para os meus braços, pois só assim poderá encontrar o veio artístico dentro de você”. Violet não disse isso com estas palavras; fez melhor, produziu uma pequena tese sobre o assunto. Fico conjecturando, que a grande inspiração e o veio artístico de Vita é o resultado de sua convivência e romance com Violet – o grande alimento, o maná da vida “desregrada”, “imoral”, “irracional”, ao contrário da vida de luxo, tédio, requinte e nobreza da herdeira do nome Sackville-West – Violet é o veneno e o remédio que os deuses mandaram. Pensemos qual o artista que não se entrega de corpo e alma na letra, na tinta, ou em qualquer outra produção? É preciso entrega e se há entrega também há grande dose de dor, de paixão, de amor – passio, phatos. A arte é uma catarse – sublimar é elevar o sofrimento ao lugar de tópos, de transformação – superação. É preciso que Vita se entregue a Violet – acordar Mytia e Julian do sono profundo da futilidade para que ele, vestido de fantasias tome Alushka, e se lancem, ambos, no paraíso do prazer e da arte. Um lugar distante de toda a pomposa e esnobe sociedade inglesa – herdeira da moral vitoriana. O tópos de Violet é a paixão incomensurável onde mora a intelectualidade e lubricidade – a beleza. E a melhor parte disso é que em abril de 1918 Vita se entrega, mesmo que temporariamente, ao mundo de Violet.
Anatólia A.

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