INTRÓITO

Subverter, Exorcizar, Viver, Beijar, Amar, Odiar, Saber, Piratear, Analisar, Mover, Parar, Rejuvenescer, Envelhecer... Tudo isso e nada. Petit Subversion é só um diário de alguém comum - de Anatólia... um fantasma.

domingo, 30 de março de 2008

Angústia Gorda (continuação, 2º parte da Angústia)


“A pessoa a que me referi surgiu de supetão entre a Rua 1º de Março e a Rua do Comércio. Eu ia dobrar a esquina, ela vinha em sentido contrário – e foi uma colisão feia. A aba do meu chapéu de palha bateu-lhe na testa, provavelmente feriu-a.
– Perdão! – Perdão!
Dei um passo para trás e distingui uma criatura enorme que também havia recuado com o choque e estava diante de mim, a mão cobrindo um dos olhos, onde tinha batido a aba do chapéu. O olho descoberto, os beiços contraídos, as rugas da cara, exprimiam espanto, raiva e dor. Encostei-me à parede, deixei-a passar. Foi um tempo insignificante, mas deu para vê-la da cabeça aos pés. Um minuto depois tinha desaparecido, a banda do rosto crispada, o olho disponível voltado para mim com um brilho de ódio. O espaço que ocupara na calçada era atravessado por outros corpos que iam e vinham, sem me despertar interesse. Mas a imagem do primeiro corpo vivia em mim. Era uma mulher gorda, amarela, mal vestida, com uma barriga monstruosa. Não sei como podia andar na rua conduzindo aquela gravidez que estava por dias. A saia, esticada na frente, levantava-se exibindo pernas sujas e inchadas. Os pés, sujos e inchados, cresciam demais nos sapatos cheios de buracos. Com uma das mãos segurava o braço de uma criança magra e pálida, com a outra escondia o olho e um pedaço de cara. Eu encostava-me à parede, resmungando atrapalhado:
- Perdão! – Perdão!
Findo o primeiro momento, aquela figura me provocara cócegas na garganta e um desejo idiota de rir. A barriga disforme resistia ao pano desbotado que tentava conte-la e empinava-se, tinha uma forma agressiva. Estava ali um cidadão que antes de nascer, ameaçava a gente. A mãe que só tinha uma banda de rosto, torcia-se por causa da pancada recebida e cravava-me um olhar duro, a metade de um olhar irritado e cheio de sofrimento.
- Perdão! – Perdão!
Subitamente as cócegas desapareceram, a vontade de rir morreu, atentei vexado naquela barriga enorme que me provocava. A roupa esgarçava-se, desbotada, fuxicada e remendada; os pés, metidos a força nos sapatos furados, pareciam bolos. Dera recuando, um puxão na criança, que se pusera a chorar. Nenhuma palavra, apenas uma interjeição de dor e raiva, grito rouco, perfeitamente selvagem. Com certeza já vinha recebendo encontrões, e aquele, demasiado rude, lhe esgotara a paciência. Andar no meio da multidão aos emboléus, com semelhante barriga! Só muita necessidade”.

ANGÚSTIA – Graciliano Ramos – 1936 (p. 141-142)

Essa angústia tinha corpo, mas era morta de desejo. Uma angústia gorda que só sabe crescer de dentro para fora como uma grávida prestes a parir. Mas morta de desjo pode ser trocada para morta de vontade ou com muito desejo. Porém angústia não deseja. Angústia mata!

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